A ilha de ciência,
saber e felicidade
Francisco Marshall – Historiador, arqueólogo e professor da
UFRGS
Pitágoras, introdutor do vegetarianismo e da
crença na metempsicose entre os gregos, revolucionou a matemática, com seu
teorema e com a concepção de que tudo é número, com a qual se pôs a examinar o
cosmos. Deduziu que os astros, formas perfeitas, correspondem a notas musicais,
movem-se de acordo com equações matemáticas e assim produzem música – a chamada
harmonia das esferas, que chega a nossos ouvidos sobretudo pela obra de Bach,
pitagórica. Seu arrojo contrariou conterrâneos e o levou a emigrar e fundar sua
comunidade alternativa em Crotona, na Magna Grécia (sul da península itálica).
Hoje ouvimos música em formato digital, resultado similar mas bem diverso da
tese original deste guru, autor também da doutrina do tetraktys, o triângulo
místico, com quatro pontos em cada lado e um no meio, somando 10, o número
perfeito. Este triângulo influenciou a cabala e outros misticismos, mas a ideia
do número perfeito inspirou também a noção de isonomia em Atenas, quando esta
implantou, em 508 a.C., um regime baseado em proporção e simetria, posteriormente
chamado democracia, e adotou arranjo político decimal. Pitágoras olha para nós
e pergunta: compreendereis, algum dia, o que é isonomia, e quanta felicidade
produz? Examinemos os números.
A felicidade é um dos temas do outro sâmio
ilustre, Epicuro. Desencantado com a cidade, Epicuro busca na amizade (philia)
a fonte da felicidade, e preconiza o controle da passionalidade para obtenção
da paz de espírito, por distanciamento (ataraxia), na busca de uma vida menos
dolorosa (aponía). Este atomista parece falar para nós a partir de uma janela
terapêutica e preconizar menos excessos e cóleras em favor de maior serenidade
e prudência. Igualmente, mostra que a felicidade pode ser obtida por caminho
ético, por reflexão e boas escolhas. A noção de philia contém componente
erótico, a força de atração que une e perpetua o universo, inclusive a cidade,
que deve saber se fazer amorosa, sob pena de colapsar diante da discórdia.
Note-se que não há aqui evangelismo barato, mas a ciência de que é preciso
produzir a concórdia e de que esta conduz à meta maior da vida humana.
As teses do terceiro sâmio notável desta
lista, Aristarco, costumam surpreender aos nossos contemporâneos, e evidenciam
o tesouro perdido em séculos de obscurantismo. Aristarco defendeu, 1.800 anos
antes de Copérnico (1473 – 1543), um sistema heliocêntrico, com a terra
movendo-se em sua órbita. O Sol, disse este herdeiro de Anáxagoras (510 – 428
a.C.), é uma entre milhares de estrelas similares. Um de seus sucessores,
Eratóstenes (276 – 194 a.C.), bibliotecário chefe da Biblioteca de Alexandria,
calculou em 40 mil quilômetros a circunferência da Terra; no local medido, é de
fato 40.008 km. O sistema heliocêntrico de Aristarco foi superado pelo
geocêntrico de Claudio Ptolomeu (90 – 168 d.C.), mas a grande perda
evidencia-se melhor com a morte da astrônoma, filósofa e matemática Hypatia de
Alexandria (370 – 415 d.C.), linchada por uma horda de cristãos enfurecidos;
era o prenúncio da era em que livro, reflexão, democracia, liberdade e ciência
entrariam em colapso, e até hoje temos que lutar para resgatar, defender e
atualizar este patrimônio.
Certa feita, minha filha caçula Heloísa,
então com 7 ou 8 anos, desenhou a cronologia histórica e me disse, por
conclusão própria, o que muitos pensam ao conhecer a ciência antiga e seu
colapso diante da irracionalidade: “pai, se não fosse a religião na Idade
Média, o homem teria ido à Lua 800 anos antes”. Bem-vindo, Richard Dawkins;
traga consigo não apenas Londres, mas também Mileto, Atenas, Samos e
Alexandria, com as quais refundamos em Porto Alegre cidades com ciência e
liberdade.
Artigo publicado no caderno PrOA do jornal
Zero Hora de 24 de maio de 2015
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