quarta-feira, 14 de setembro de 2016

CCEPA NA MÍDIA

O pacto esquecido
Milton R. Medran Moreira: Procurador de Justiça aposentado, diretor do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre.

O Estado não pode impedir que alguém tome um táxi e, no percurso, sequestre e mate seu motorista. Mas o Estado pode e deve criar condições para que não transitem pelas ruas de uma cidade pessoas capazes de praticar tais atos. Aliás, é justamente para isso que existe o Estado.

A liberdade de ir e vir talvez seja o elemento que melhor caracteriza o conceito de civilização. Civilização vem do termo latino "civitas", cidade. Define o locus em que convivem e se movimentam os cidadãos. É o espaço público cuja criação teve como pressuposto o que os filósofos chamaram de pacto social. Para viabilizá-lo, o ser humano, até então tido como o próprio "lobo do homem", precisou renunciar a alguns direitos de que se julgava detentor: o de destruir o outro para preservar seu próprio espaço, o de revidar com igual violência as agressões de que se julgava vítima, o de ser, enfim, legislador, julgador e executor de suas conveniências.

Não fosse esse hipotético pacto, não haveria Estado, não precisaríamos de governo, de juízes e de executores das leis que regulam nossa convivência. Não haveria civilização, enfim.

Numa extremada simplificação — mas à qual convém recorrer em momentos de crises graves como a que estamos vivendo —, ao Estado cabe precipuamente definir quem pode e quem não pode circular livremente pela civitas. E dela retirar os que não se habilitaram ainda à civilização.

O "ainda" do período anterior entenda-se como expressão da mais otimista crença no ser humano. É adesão à corajosa assertiva socrática de que ninguém é deliberadamente mau. Amor, bondade, solidariedade são qualidades intrinsecamente humanas. Repousam no seu espírito imortal e ali dormitam, às vezes, por milênios, à espera de serem despertadas. À educação competirá tirá-las do sono, burilá-las e qualificá-las, habilitando o indivíduo ao convívio civilizatório.

Quando, vencido o egoísmo, firmamos o contrato social, estávamos certos de que o Estado seria o agente primordial dessa tarefa. Não podemos ter-nos enganado. E não nos conformamos que o Estado nos engane.


Artigo publicado no jornal ZEO HORA de Porto Alegre em 14/09/2016