sábado, 24 de dezembro de 2011

Natal simplesmente humano
“Tinha fugido do céu. Era nosso demais para fingir de segunda pessoa da Trindade.”      (Fernando Pessoa)

Pesquisadores que se ocupam de Jesus histórico já chegaram a alguns consensos. Por exemplo: Jesus não teria nascido em Belém, mas em Nazaré. O 25 de dezembro não foi o dia de seu nascimento. A data, que marca, no Hemisfério Norte, o ponto alto do solstício de inverno, servia para homenagear o deus Sol, personificado em várias divindades da Antiguidade.

Para compor o grande sincretismo religioso do Ocidente, o cristianismo assimilou diversas tradições dos povos por ele tidos como pagãos. Vale recordar: em quase todas as culturas nas quais se inspirou existia o mito do parto, por mãe virgem, de um deus; sua imolação para pagar os pecados do mundo e a ressurreição, ao terceiro dia. Exatamente como nos relatos bíblicos sobre Jesus.

As festas cristãs, pois, a começar pelo Natal, a mais terna de todas, estão impregnadas de antigas mitologias, incorporadas pela cristandade a seu calendário de efemérides. Sendo assim, cabe perguntar: que significado podem ter tais festividades para o não crente? Se Jesus não é Deus; se não é, como creem os cristãos, o salvador da humanidade; se não foi concebido pelo Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima Trindade; se os episódios miraculosos contidos nos relatos evangélicos são apenas ressignificações mitológicas, o que sobra, então, de Jesus, esse personagem que dividiu a História entre antes e depois dele?

Sobra, exatamente, seu humanismo, tecido de elevado amor ao semelhante. Sobram as lições magnânimas de fraternidade, de entrega incondicional, de solidariedade, de compaixão, de alteridade, de firme consciência da igualdade essencial entre todos os seres humanos, independentemente de crença, cultura, etnia, sexo, posições políticas e sociais. E se tantas qualidades são encontráveis nesse personagem da História, mesmo se o considerando nada mais que humano, há sobradas razões para festejar a data convencionalmente tida como de sua chegada a este planeta. Até porque dele se tornou, quem sabe, o maior dos benfeitores.

Diversamente do que às vezes se diz, não é preciso festejar o Natal religiosamente para se conferir à efeméride um significado não materialista, profundamente espiritual e motivador de saudável confraternização, pacificação, tolerância, perdão e louvor à vida. Nesse sentido, se o Natal não existisse, seria preciso inventá-lo, fosse o nome que, então, lhe déssemos. Homens e mulheres de todas as culturas reservam datas para a solene celebração do amor a seus caros, da troca recíproca de afagos e dádivas materiais e espirituais. No calendário cristão, essa efeméride coincide com o final de ano. É, pois, além de tudo, tempo de agradecer pelo dom da vida prestes a se renovar, projetando um novo período de aprendizado e conquistas.

O Natal é, assim, festa de todos. De crentes e não crentes. Cristãos ou não. E é isso que lhe confere indizível magia. Para muitos, milagre da fé. Para a maioria, entretanto, expressão mais cara e sublime de nossa condição humana, circunstância que a todos iguala e nos faz genuinamente irmãos.

Se bem percebermos, está aí a mais pura essência da espiritualidade: reconhecermo-nos como iguais, porque dotados de humana consciência, um valor não mensurável materialmente e, no entanto, mais concreto que a fé e mais sólido que os mitos, porque ancorado na real dimensão do espírito. 

Milton Medran Moreira
Artigo publicado no jornal ZERO HORA de Porto Alegre em 24/12/ 2011