quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

CCEPA NA MÍDIA


Simplesmente, humano.
“É uma pessoa que não tem nada de inquisidora, extremamente afável, gentil, absolutamente tranquila”. (Leonardo Boff, sobre Bento XVI, 2005)

Só o tempo ou, quiçá, nem ele, poderá revelar à História todas as razões que levaram o Papa Bento XVI à renúncia de seu pontificado. Demitir-se de um cargo para o qual foi eleito vitaliciamente e que alça seu titular, no imaginário popular e por força da fé e da tradição, à distinguida condição de “representante de Deus na Terra”, é gesto tão singular quanto surpreendente.
Da instituição por ele dirigida reconhece-se, mundialmente, sua força e poder. Mesmo que a História lhe haja imputado, ao curso dos tempos, a autoria de graves violações aos mais caros valores civilizatórios, seus dirigentes e fiéis chamam-na de “santa”. E, conquanto da lista de seus sumos pontífices, constem nomes a quem se atribuem atos da mais abjeta imoralidade e flagrante injustiça, o titular do cargo, recebe, em qualquer circunstância, o tratamento de “Santidade”.
O adjetivo que antecede a nominação da Igreja Católica Apostólica Romana e o tratamento reverencial reservado a seu sumo pontífice, justificam os teólogos, não se vinculam exatamente ao procedimento institucional e pessoal eventualmente adotado por um por outro, mas da missão sacrossanta de que estariam investidos. Em tese, pois, estariam ungidos da perfeição e das virtudes divinas, mas, na prática, como qualquer pessoa ou instituição, sujeitam-se aos erros pertinentes à humana imperfeição.
Difícil entender essa contradição fora do dualismo sagrado/profano. Por muito tempo, enquanto vigia no mundo a crença na existência de uma “ordem divina” em inconciliável contraste com a “ordem humana”, aquela incorrupta, esta corrompida por força do “pecado original”, havia lugar para esse fatal e insuperável maniqueísmo. Dentro dessa concepção, uma única instituição poderia se arrogar o privilégio da origem divina que a faria ponte entre os céus e a Terra. Mas, composta que é de homens, justificava-se fosse, ao mesmo tempo, santa e pecadora, virtuosa e devassa, sem que, com isso, perdesse  autoridade e credibilidade.
 A modernidade, no entanto, sem que, talvez disso se apercebesse claramente a Igreja, foi, pouco a pouco, superando o maniqueísmo sagrado/profano, divino/humano, substituíndo-o simplesmente pelo natural. O fenômeno universal é regido por leis naturais, que abarcam o físico e o moral, o material e o espiritual. Não é preciso tirar Deus dessa nova concepção de universo. Ele aí está presente como “inteligência suprema e causa primeira de todas as coisas”, consoante tenta defini-lo O Livro dos Espíritos (1857).  Mas, para esse Deus não há pessoas e nem instituições privilegiadas, acima do bem e do mal. “Criados” todos simples e ignorantes, porque resultantes de um longo processo evolutivo, tornamo-nos capazes de nos reconhecer mutuamente como iguais em direitos e obrigações, sujeitos a erros e acertos e subordinados a uma mesma lei universal. Somos, no plano e no estágio em que nos encontramos, simplesmente, humanos. Como humanas serão todas as instituições que formos capazes de criar.
É nesse contexto que o velho conceito de santidade vai dando lugar ao de humanidade. Descobre-se, pouco a pouco, que toda a virtude, antes tida por revelação divina a alguns intermediários privilegiados, está, de fato, ínsita na própria natureza humana, como fagulha da divindade que a tudo deu origem e que a tudo alcança. Na medida em que essa consciência se faz comum entre homens e mulheres, percebe-se que não há mais lugar para distinções entre uns e outros e nem para outorgas representativas da divindade, com leis que assegurem privilégios sejam esses por crença, sexo, ideologia ou etnia.
Essa mesma consciência de humanidade que a todos nos submete a princípios éticos universais é avassaladora. Pouco a pouco, derruba, em todos os quadrantes, as mais resistentes autocracias e aristocracias. Instituições, grupos raciais, políticos ou religiosos que teimam em preservar seus membros da censura imposta por regras que a civilização e a modernidade tornaram mundialmente cogentes, mais cedo ou mais tarde, terão de se submeter a esse tratamento igualitário de que buscaram se furtar. É o tempo da humanização que está um passo à frente da santificação.
Sem ser exatamente um santo, título que, talvez, até o incomodasse, Joseph Ratzinger entendeu, quem sabe antes de seus pares, que é simplesmente um homem e que humana é, simplesmente, a instituição que dirigiu. Seria esse o móvel de sua renúncia?

Milton Medran Moreira - Presidente do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre

Matéria Publicada no Jornal ZERO HORA de Porto Alegre em 28 de fevereiro de 2013