quarta-feira, 25 de setembro de 2013

CCEPA NA MIDIA



Lições de Nairóbi e de Roma

Milton R. Medran Moreira *
Primeiro, eles mandaram que saíssem todos os muçulmanos. Depois, e para confirmar que ali permaneciam apenas “infiéis”, os fanáticos terroristas do shopping center de Nairóbi foram perguntando a cada um como se chamava a mãe do profeta Maomé. Não sabê-lo, pela tábua de valores deles, era a plena justificativa para a morte de todos.

Não existe pior tirania que a da fé. Quando e onde se a coloca como instância mais importante da vida, todo o restante, inclusive a vida, deixa de ter qualquer significado. Por isso, fé e liberdade, democracia e fé, assim como fé e igualdade ou fraternidade e fé, são incompatíveis, desde que o objeto da fé extrapole os valores humanos.

Repetir com Protágoras que “o homem é a medida de todas as coisas” não implica, necessariamente, em inadmitir a existência de uma ordem superior ou uma inteligência suprema às quais todo o universo se conforme. Entretanto, dicotomizar a vida entre o natural e o sobrenatural, sacralizando este e a ele subordinando a natureza humana é, em qualquer circunstância, sobrepor a barbárie à civilização. É investir na perpetuidade do império do fanatismo em detrimento do reinado da razão e dos sentimentos, conquistas que fomos amealhando, aprimorando e consolidando no processo evolutivo.

Quando o Papa Francisco afirma não ser de sua competência ou da Igreja que preside julgar ou condenar os homossexuais, quando acena para atitudes de compaixão em vez de condenação a quem pratica o aborto, quando dá mostras da possibilidade de revisão de temas como divórcio, celibato clerical, pluralismo religioso, diálogo com não crentes, ou quando sugere que mulheres, tanto como os homens, participem da hierarquia eclesiástica, o bispo de Roma se despe dos paramentos que o ligam a uma hipotética ordem sobrenatural para revestir seu espírito da concretude humana. É somente nesse terreno que podemos, todos, nos reconhecer verdadeiramente irmãos e, nessa condição, buscarmos caminhos, por certo plurais, de transcendência dessa provisória, mas natural, realidade para outros estágios sonháveis e possíveis, mas sempre naturais. Espiritualidade, para ser genuína, não pode se apartar da natureza, porque o espírito é sua parte integrante.

Toda a realidade até aqui conhecida pelo ser humano tem a exata dimensão do homem. Todos os valores éticos até aqui construídos, assimilados e normatizados são obra humana, conquistas às vezes duramente obtidas apesar da religião e, mesmo, contra ela. Religião que não se dobra à primazia da razão humana se faz desumana, no sentido que a modernidade conferiu a esse adjetivo, dando-lhe a sinonímia de cruel. Escudar-se em presumíveis razões divinas contrárias à razão assimilável pela inteligência humana para legislar, julgar, sentenciar e executar pessoas é confiscar o poder divino. É que a única forma de pensarmos e sentirmos o divino é perscrutando-o na razão e nos sentimentos humanos, medida de que dispomos para auscultar o bom e o belo.

Quando todos formos verdadeiramente humanos, como, reconheça-se, está buscando Francisco sê-lo, não mais haverá lugar para tragédias como a do Westgate Mall de Nairóbi. E, então, talvez, ninguém mais precise de religião, porque esta terá se conformado aos autênticos anseios humanos, reflexos da presença divina na natureza inteira.

*Procurador de Justiça aposentado e jornalista. Presidente do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre.

Artigo publicado no jornal “ZERO HORA” de Porto Alegre em 25/09/2013